Maryse Condé “Amar os outros parece-me ser a forma, talvez a única, de causar impacto”

A morte de Maryse Condé, a 2 de Abril, foi assim – ruidosa depois do último suspiro, também nos escaparates. A “grande dama” das letras francesas ou a “voz suprema da literatura caribenha”, como lhe chamavam, partiu aos 90 anos no sul de França e o mundo literário comoveu-se.

Há vários anos que não via. Os últimos três livros foram ditados, palavra por palavra, ao marido e a um amigo. A voz transformou-se na pena desta escritora da ilha caribenha de Guadalupe, que explorou temas espinhosos – raça, género e colonialismo – numa obra vasta que lhe acompanhou os passos e lutas pelas Antilhas, África, Europa e Estados Unidos.

Foi considerada uma eterna candidata ao Nobel da Literatura. Em 2018 recebeu o Prémio da Nova Academia (DR)Foi considerada uma eterna candidata ao Nobel da Literatura. Em 2018 recebeu o Prémio da Nova Academia (DR)

Maryse Boucolon nasceu a 11 de Fevereiro de 1934 na cidade guadalupense de Pointe-à-Pitre, no ultramar francês. A mãe foi uma das primeiras professoras negras da ilha. O pai era o dono de um banco local. “Os meus pais tiveram infâncias terríveis. Nenhum dos dois sabia quem era o pai. A minha avó materna era criada e ‘alugada’ aos brancos crioulos, e a mãe do meu pai foi queimada até à morte na sua cabana”.

Ainda assim (ou talvez por isso mesmo), a família Boucolon “simplesmente escolheu ser francesa”, resumia Maryse Condé à editora Impedimenta. “Os meus pais foram vítimas de ideias coloniais, mas não se aperceberam. Queriam mostrar que negros como eles podiam-se comportar bem e dar o exemplo (…) pensavam que, para proteger os filhos, era melhor não falarmos sobre a nossa origem africana.” Fiéis à “burguesia negra da ilha”, os pais da escritora impediam os oito filhos de participar nas manifestações populares ou de conviverem com crianças “socialmente inferiores”.

Dentro da bolha em que vivia, a literatura ocupava um espaço importante. Aos 12 anos, Maryse já tinha lido toda a obra de Victor Hugo. Com essa idade, dedicou à mãe uma peça de teatro de um ato só. “Às vezes penso que só estou aqui porque persegui o sonho do meu irmão. Queria ser escritor e não podia. Estou a realizar o seu sonho”, disse ao El País.  

Sarcástica e polémica, punha em causa os modelos políticos e culturais da sua época (Sophie Bassouls - Sygma)Sarcástica e polémica, punha em causa os modelos políticos e culturais da sua época (Sophie Bassouls - Sygma)Imersa nas letras e cada vez mais atenta ao seu entorno, as “contradições em Guadalupe” não tardaram a incomodá-la. “Era muito mimada e não tinha a menor consciência da realidade [racial]”. Recorda um momento lapidar: “[Certa vez] uma rapariga branca disse-me que a mãe lhe ia bater se a visse comigo. Mas, na realidade, tudo me foi revelado na sua total crueza quando, aos 16 anos, me mudei para Paris para estudar. Foi aí que descobri o meu passado e a minha verdadeira identidade.” 

“A cor é um epifenómeno”

“A França era profundamente racista, as crianças recusavam-se a sentar-se ao lado dos negros no metro”, contou numa entrevista a El País, em 2021. “As pessoas faziam comentários do género ‘como é fofa essa menina’. Foi quando percebi que não era como os franceses. Antes, eu não sabia disso. Descobri-o em Paris.”

Nesses “anos de choque”, Maryse estudou na Sorbonne. Trabalhou na rádio e frequentou os círculos intelectuais negros. Nunca deixou de escrever e, em 1953, publicou os primeiros contos. 

A curiosidade e “uma certa busca identitária” levaram-na em 1960 por uma longa jornada africana de 13 anos. Viveu na Côte d’Ivoir, Gana, Senegal e Guiné-Conacri, onde se politizou com colegas marxistas. “Sou atraída por pessoas prontas a desobedecer à lei e que se recusam a aceitar ordens de qualquer pessoa – pessoas que, como eu, não acreditam em riqueza material, para quem o dinheiro não é nada, ter uma casa não é nada, um carro não é nada”, disse numa entrevista de 1989 ao jornal Callaloo. “Esse tipo de gente tende a ser minha amiga.”

Entre 1960 e 1973, Maryse Condé viveu em vários países da África Ocidental (Sophie Bassouls - Sygma 2)Entre 1960 e 1973, Maryse Condé viveu em vários países da África Ocidental (Sophie Bassouls - Sygma 2)

Assistiu na primeira fila à conquista da independência e à descolonização de vários países africanos e teve até tempo de se dececionar com líderes profundamente corruptos saídos dos movimentos de libertação. Enquanto viveu em África, foi professora e jornalista, passou por dificuldades económicas e foi politicamente perseguida. Após a queda de Nkrumah, foi expulsa do Gana. Em “Vida sem Maquilhagem” retrata este período. “África nunca me considerou sua filha… uma prima estranha, na melhor das hipóteses”, comentou a Impedimenta. Esta experiência deu-lhe uma certeza: “a cor é um epifenómeno”. Bem ao estilo de Fanon, o seu “mestre em todos os aspetos”, sem o qual “não seria capaz de pensar”. “Preciso dele para entender o mundo”, assumia.

No início dos anos 70 volta a França. Doutora-se em Literatura Comparada com a dissertação “O estereótipo do negro na literatura africana”. Casa-se pela segunda vez, com o que seria o seu companheiro até ao final e tradutor de muitas das suas obras para inglês, Richard Philcox. Como escritora, foi um momento determinante. “Comecei [a escrever] aos 40 anos. Antes eu não conseguia, tinha quatro filhos e tinha que os criar sem marido. Richard deu-me a calma e equilíbrio para escrever”, comentou ao El País. Em 1976, publica o primeiro romance, “Hérémakhonon”, sobre uma mulher negra de Guadalupe que viaja por Paris e África, sem se encontrar em nenhum lado a não ser em si mesma. Apesar das semelhanças, garantiu uma e outra vez que não é um livro autobiográfico. Com “Segu”, em 1984, vendeu mais de 200 mil livros em França e despertou a atenção do mundo.

Com o livro Segu (1984) consagrou-se como uma das vozes mais potentes da literatura francófona (DR)Com o livro Segu (1984) consagrou-se como uma das vozes mais potentes da literatura francófona (DR)“Nem em francês, nem em crioulo, escrevo em Maryse Condé”

Já com o nome vincado nas letras francófonas, em 1986 regressa a Guadalupe. Os mais de 35 anos fora, numa errância entre Europa e África, trazem a casa uma Maryse bem diferente, com personalidade forte e convicções firmes. Provocadora e polémica, denuncia, satiriza e desafia os modelos dominantes – económicos, políticos, culturais, metropolitanos ou insulares. Na sua obra e em intervenções públicas questiona abertamente não só a miséria e o colonialismo, mas também monstros sagrados como Aimé Césaire e Léopold Senghor, ou movimentos como a Negritude, Crioulidade e Panafricanismo. Acusa-os de serem como o “racismo branco”, ao reduzir todas as pessoas negras a uma só identidade. Estilhaça também, sem rodeios, os essencialismos do “espelho africano onde se olhavam muitos intelectuais antilhanos”.

No mesmo tom, lança-se de peito aberto em numerosas discussões sobre a história, língua e literatura antilhanas. Dizia que não escrevia “nem em francês, nem em crioulo”, mas sim “em Maryse Condé” e punha a identidade em perspetiva. “Ser antilhano… finalmente eu não sei muito bem o que isso quer dizer. Um escritor deve ter uma identidade definida? Um escritor não poderia estar constantemente em busca de outros homens? O que pertence ao escritor não é somente a literatura, é dizer algo que não tem fronteiras?” “Notas sobre um regresso ao país natal”, 1987.

Inspira-se no “canibalismo literário” do brasileiro Oswald de Andrade – “Uma pessoa colonizada nunca pode estar inteiramente livre do país colonizador (…) comemos o que achamos melhor dos outros e tentamos integrá-lo”. Numa obra vastíssima, inclui um sem fim de referências cruzadas que vão de Guadalupe ao Mali, passando por França, África Ocidental e outras geografias supostamente desencaixadas. Para além de “Segu”, o hit primordial, e “A Vida sem Maquilhagem”, destaca-se com “Eu, Tituba, a Bruxa Negra de Salem”, “Coração que ri e que chora”, “À Espera da Subida das Águas”, “A desejada”, entre dezenas mais de títulos.

A escritora nasceu na ilha de Guadalupe, em 1934 (DR)A escritora nasceu na ilha de Guadalupe, em 1934 (DR)Escritora Maryse Condé, em fevereiro de 2019, em Barcelona .(Albert García)Escritora Maryse Condé, em fevereiro de 2019, em Barcelona .(Albert García)

O tempo confirmou-a como uma escritora poderosa, escreve a editora María Yaksic e estudiosa da obra da autora. “A literatura de Maryse Condé pode ser lida como uma contra-história singular e poderosa. Primeiro, da forma como inscreveu a literatura caribenha e antilhana-francófona no espaço editorial da literatura francesa. Segundo, porque conseguiu desenvolver um projeto literário único e de longo prazo, sempre contra a maré e a partir do seu lugar como escritora. A partir daí, desmantelou heróis e heroínas”. 

Por outro lado, continua, Maryse Condé representa “uma torrente de movimento e mudança”. “Com muito talento e humor, tornou-se uma espécie de ponto de fuga, uma criadora única de mundos possíveis: a partir das suas personagens e protagonistas escreveu romances em que se ria do dogmatismo identitário e político, dos estereótipos, sem deixar de se pensar como uma escritora pró-independência”.

Contracorrente, esta força bruta partiu pedra. Maryse Condé foi duas vezes selecionada para o International Booker Prize (a última em 2023 pelo seu livro de despedida, “O Evangelho Segundo o Novo Mundo”) e em 2018 recebeu o Prémio da Nova Academia, criado por figuras da cultura sueca como substituto temporário do Prémio Nobel da Literatura, cancelado naquele ano por um escândalo sexual. Foi professora das universidades norte-americanas de Columbia, onde fundou o Centro de Estudos Franceses e Francófonos, e de Virgina, Maryland e Califórnia. Foi também a primeira presidente do Comité Nacional para a Memória da Escravatura, criado em 2004, em França.

Maryse Condé faleceu a 2 de abril, aos 90 anos (DR)Maryse Condé faleceu a 2 de abril, aos 90 anos (DR)

A esse país regressou há alguns anos. Padecia do que chamava “síndrome de Boucolon”, nome de solteira. Uma doença degenerativa que levou vários familiares e a deixou cega e sem caminhar. Depois de deambular entre tantos mundos, lutas e identidades, nas montanhas francesas encontrou “um certo descanso”, assumiu ao El Pais. De repente, tudo se tornou mais claro e simples. “Amar os outros parece-me ser a forma, talvez a única, de causar impacto”, escreveu já quase no fim.

A 15 de Abril, o presidente Emmanuel Macron prestar-lhe-á uma homenagem na Biblioteca Nacional de França. “Há cinquenta anos que [em Guadalupe] tentamos tornar-nos independentes, mas não conseguimos”, ecoa a sua voz.

por Pedro Cardoso
A ler | 13 Abril 2024 | Guadalupe, maryse condé